Reportagens do baú: Crónica de uma missa profana
[publicada originalmente a 7 de Julho de 2003 no PortugalDiário]
REPORTAGEM: A liturgia de um congresso social-democrata, que se confunde com Portugal. Haja fé no Partido. O jornalista esperou pela madrugada para ouvir os delegados que as televisões não mostram
«Visto lá de baixo isto parece bem mais fácil, mas daqui vê-se um Portugal inteiro.» Afinal, "isto" «não é só um congresso do PSD, é um congresso de Portugal, de portugueses para portugueses». Ninguém duvida da afirmação do jovem engravatado que fala ao "povo laranja" - e as palmas confirmam.
É, pois, uma liturgia popular a que se assiste. A segunda noite de trabalhos do conclave máximo do Partido Social-Democrata, de volta ao poder, sublinha os rituais de quem gosta do poder. E de se confundir com o poder. Que é como quem diz, de ser Portugal: «Só com o Governo social-democrata», diz-se para justificar pedidos, exigências, conquistas, sucessos, para sublinhar o óbvio: é «um congresso de Portugal».
O povo fala. «O PS é mau, primário, totalitário, incompetente», «sufoca a nossa vida», exclama um delegado de Matosinhos. Que tem uma curiosa tese sobre a democracia, para quem vive sufocado no totalitarismo: «O aperfeiçoamento da democracia só pode servir bem às ideologias que são capazes.»
O povo aplaude. «Num acto humilde e público quero agradecer a vitória ao fim de 27 anos de socialismo em Caminha», terra onde «o senhor primeiro-ministro [então Durão Barroso] e sua excelentíssima família passa férias», agradece o porta-voz dos «pescadores e agricultores humildes».
O povo lembra. «Encontrei o "Zé" do Marcelo Rebelo de Sousa, do Pedro Santana Lopes e do Durão Barroso, o "Zé" esquecido» em tempos de poder, que pediu a um delegado, Fernando Costa, para ser lembrado. «Ó Costa, dá lá uns recados, diz que este congresso está muito pacífico, que as bases é que devem falar.»
O povo engole. A custo, aplaude-se o líder popular Paulo Portas, outras vezes vaiado. Mas há quem ainda tenha dificuldades em beber do mesmo corpo e sangue: «Temos uma maioria absoluta, infelizmente com Paulo Portas.» E daí a conclusão do mesmo delegado: «Com Deus me deito, com o Diabo me levanto.»
Para não desdizer Fernando Seara, que ao PortugalDiário falava no congresso do PSD como «uma missa», muitos leram na Bíblia os sinais do futuro. «Expulse os vendilhões do templo», exortou um fiel seguidor ao seu Cristo-Durão (o mesmo Cristo invocado por Marcelo, no congresso da Feira).
Mas a missa não é sagrada. Todos falam, todos riem, mil toques de telemóvel florescem, e nem a advertência professoral de Manuela Teixeira, dirigente da Federação Nacional de Educação, convenceu os delegados: «Façam menos ruído, por favor, não gosto que outros falem quando eu falo.» As rezas em surdina continuaram.
E se Cristo não desceu à Terra, o congresso teve no palco um orador nato: Pedro Santana Lopes. E uma sala a meio gás, transfigurou-se. Cheia, silenciosa, embevecida. «Sou um homem de fé», proclamou o profeta de Lisboa. Que abençoou a cerimónia: «Assim Deus nos ajude.»
O povo debandou - para casa, para o bar, para a noite. Já ninguém ouviu as dezenas de oradores ainda inscritos. Cá fora, anuncia-se uma peça de teatro. «Últimas representações.»
REPORTAGEM: A liturgia de um congresso social-democrata, que se confunde com Portugal. Haja fé no Partido. O jornalista esperou pela madrugada para ouvir os delegados que as televisões não mostram
«Visto lá de baixo isto parece bem mais fácil, mas daqui vê-se um Portugal inteiro.» Afinal, "isto" «não é só um congresso do PSD, é um congresso de Portugal, de portugueses para portugueses». Ninguém duvida da afirmação do jovem engravatado que fala ao "povo laranja" - e as palmas confirmam.
É, pois, uma liturgia popular a que se assiste. A segunda noite de trabalhos do conclave máximo do Partido Social-Democrata, de volta ao poder, sublinha os rituais de quem gosta do poder. E de se confundir com o poder. Que é como quem diz, de ser Portugal: «Só com o Governo social-democrata», diz-se para justificar pedidos, exigências, conquistas, sucessos, para sublinhar o óbvio: é «um congresso de Portugal».
O povo fala. «O PS é mau, primário, totalitário, incompetente», «sufoca a nossa vida», exclama um delegado de Matosinhos. Que tem uma curiosa tese sobre a democracia, para quem vive sufocado no totalitarismo: «O aperfeiçoamento da democracia só pode servir bem às ideologias que são capazes.»
O povo aplaude. «Num acto humilde e público quero agradecer a vitória ao fim de 27 anos de socialismo em Caminha», terra onde «o senhor primeiro-ministro [então Durão Barroso] e sua excelentíssima família passa férias», agradece o porta-voz dos «pescadores e agricultores humildes».
O povo lembra. «Encontrei o "Zé" do Marcelo Rebelo de Sousa, do Pedro Santana Lopes e do Durão Barroso, o "Zé" esquecido» em tempos de poder, que pediu a um delegado, Fernando Costa, para ser lembrado. «Ó Costa, dá lá uns recados, diz que este congresso está muito pacífico, que as bases é que devem falar.»
O povo engole. A custo, aplaude-se o líder popular Paulo Portas, outras vezes vaiado. Mas há quem ainda tenha dificuldades em beber do mesmo corpo e sangue: «Temos uma maioria absoluta, infelizmente com Paulo Portas.» E daí a conclusão do mesmo delegado: «Com Deus me deito, com o Diabo me levanto.»
Para não desdizer Fernando Seara, que ao PortugalDiário falava no congresso do PSD como «uma missa», muitos leram na Bíblia os sinais do futuro. «Expulse os vendilhões do templo», exortou um fiel seguidor ao seu Cristo-Durão (o mesmo Cristo invocado por Marcelo, no congresso da Feira).
Mas a missa não é sagrada. Todos falam, todos riem, mil toques de telemóvel florescem, e nem a advertência professoral de Manuela Teixeira, dirigente da Federação Nacional de Educação, convenceu os delegados: «Façam menos ruído, por favor, não gosto que outros falem quando eu falo.» As rezas em surdina continuaram.
E se Cristo não desceu à Terra, o congresso teve no palco um orador nato: Pedro Santana Lopes. E uma sala a meio gás, transfigurou-se. Cheia, silenciosa, embevecida. «Sou um homem de fé», proclamou o profeta de Lisboa. Que abençoou a cerimónia: «Assim Deus nos ajude.»
O povo debandou - para casa, para o bar, para a noite. Já ninguém ouviu as dezenas de oradores ainda inscritos. Cá fora, anuncia-se uma peça de teatro. «Últimas representações.»
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