Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

6.1.07

Reportagens do baú: Campeão ao fim de nove anos: uma entrevista com Maria Rueff, ou melhor Zé Manel, o taxista benfiquista

[Entrevista originalmente publicada em 2003, no Culto, antiga página de Cultura do portal IOL e do jornal PortugalDiário]


O título que foge há muito aos benfiquistas é compensado pela vitória noutro campo - o da música. Zé Manel, taxista de profissão, benfiquista acima de tudo, chegou, cantou e derrotou as claques que sabiam porque é que não ficavam em casa e os "filhos da Nação" vestidos de dragão. Só dois anos depois da entrevista, Trapattoni deu a alegria que faltava a Zé Manel




O taxista Zé Manel conquistou o campeonato. Depois das claques que sabiam porque é que não ficavam em casa e dos "filhos da Nação" vestidos de dragão, Zé Manel chegou, cantou e venceu as faixas de campeão que escapam - no outro campo - ao "seu" Benfica. Uma personagem a que Maria Rueff já dava vida em directo no Herman SIC e que se "clonou" numa página de humor de A Bola.

Agora, o taxista salta da bancada para o CD - um disco até para "não-benfiquistas" - e não teme o desafio: finta as letras da dupla criativa das Produções Fictícias (os "fedorentos" Ricardo Araújo Pereira e Miguel Góis) e passa rasteiras a convidados "crème de la crème", como Sérgio Godinho, que é «um puto cheio de talento», e José Estebes, o "alter-ego" portista de Herman José.

Sem jogar à defesa, Maria Rueff explicou a táctica desta personagem ao Culto!, com a sua "rénite" a trair-lhe, por vezes, a resposta e o riso ou as fífias num campo que ainda não domina tão bem como a sua personagem, quando fala em «doze jogadores» ou «50 minutos» de jogo. Mas a actriz não fugiu às perguntas do que se joga noutros palcos: o humor em Portugal e os dias de sobressalto do seu companheiro de rábulas, Herman José.

Este disco é a entrega das faixas de campeão do José Estebes ao Zé Manel?
[risos] Não sei. Não. Acho que a personagem do Herman é tão extraordinária e já vive com todos nós há 20 anos. O Zé Manel só vive desde 1998, ainda lhe falta palmilhar muito para chegar ao nível do Estebes.

Mas do "Tal Canal" aos dias de hoje, se calhar a idade já pesa ao Estebes. Zé Manel terá outro vigor.
Acho que não. Na "picardia" dos dois [«E vai acima (picardia com José Estebes)»], acho que se nota que são dois fervorosos adeptos... e luminosos [risos]. Continuo a achar que o Estebes é uma grande construção. Caramba! Eu tinha seis anos e já assistia ao José Estebes. Se calhar, o Zé Manel nasce porque o Estebes já existia...

... e o Porto vai dando motivos ao José Estebes para existir...
Exacto!

Como aparece, então, o Zé Manel a gravar o disco?
Esta ideia surge do Tozé Brito, [administrador] da Universal [a editora do disco], que propôs - a mim e às Produções Fictícias - gravar um disco para o Benfica. Não aquele disco tradicional de claques, mas que tivesse a componente de humor das crónicas do jornal A Bola, que as Produções escrevem, que tivesse o "boneco" em si e música de grandes compositores portugueses. Este foi o clique que me fez aderir ao projecto!
Recusou-se a ideia de que, como é comédia, qualquer sintetizador serve. E ter craques - como o Sérgio Godinho, Jorge Palma, os Xutos, o Herman, o [Fernando] Tordo, o Paulo de Carvalho -, a comporem para humor foi uma coisa extraordinária. Isso é fundamental. Não é por acaso que ainda hoje trauteamos o genérico dos "Marretas".

Colocou uma grande exigência na gravação, mas há também uma grande espontaneidade.
Essa foi a minha grande preocupação. Podia ter-me enfiado num estúdio e ler simplesmente as crónicas. Mas, como não tinha imagem, apenas voz, tive de me concentrar, para que as pessoas ao ouvirem o disco me "vissem". Por isso, trabalhei o disco como se fosse um espectáculo, da mesma maneira que faço as rábulas em directo. Tinha de sair quase à primeira, para ter essa tal espontaneidade, para não soar a artificial - "lá está ela a ler e ainda por cima não percebe nada de futebol!"
Quis também do ponto de vista técnico musical ser completamente fiel à personagem. Que fosse de facto o Zé Manel a cantar, com a sua renite, com o seu problema [imita a voz da personagem]. A única coisa que "negociei" com o Zé Manel foi: "Tens de ser afinado!"

E como foi dar voz a esses nomes sonantes - e inesperados, como Sérgio Godinho?
Desde miúda que sei todas as músicas de cor de Sérgio Godinho. Sou mesmo como aquelas fãs dos Beatles: histéricas! Estar ao pé do Sérgio a cantar foi uma emoção enorme! Se bem que também sou fã da música que o Sérgio escreve - que não é das mais conhecidas - para teatro, programas infantis, cinema... Foi quase um dueto representado [«Picardia com Lagarto»] porque o Sérgio também tem experiência por esse lado.

Nota-se uma experiência anterior a nível musical.
Na adolescência cantei num grupo de música tradicional portuguesa, o Cramol, que gravou com o Zeca Afonso. Desde miúda que canto e já no programa do Marco Paulo que tinha feito umas rábulas com uma componente musical. Já tinha algumas referências: tive aulas de voz no conservatório, mas não sei ler uma pauta!
Para um actor, a própria interpretação muda nestes registos. Não sei se foi por ouvir tantas vezes as construções estranhas do Sérgio Godinho... Mas na marcha de Lisboa, no fado, no rap, tentei sempre que fosse o Zé Manel a entrar nesse ambiente.

Sem saber ler a pauta, até que ponto seguiu uma "pauta". O texto estava escrito, as músicas também. Há ali algo mais?
Os americanos comparam muitas vezes os humoristas ao músico de jazz. Este tem uma pauta, mas depois, em encontros ao vivo, 50 por cento do que se ouve é improviso, que obedece à melodia que está na pauta. O humorista ao representar uma coisa que recebeu "fixa", também a leva a outros "50 por cento". Surgiram-me tiques e coisas a meio daqueles textos rígidos. As próprias letras foram adaptadas às melodias.

E como foi nos monólogos [crónicas lidas, sem música]? Em disco podiam resultar menos bem.
O trabalho foi muito parecido com o que faço nas rábulas na televisão. Uma graça escrita é uma coisa, uma graça dita é outra muito diferente. Por exemplo, há uma parte onde falo do padre Vítor Melícias [no «Monólogo Lagartos», sobre o Sporting]. Se eu ler que na Bíblia vem que "Deus é encarnado", a gente ri-se. Dito pode magoar: "Caramba! Está a brincar com a Igreja!". Aqui é dar vida à própria personagem. O Zé Manel é atrevidote, mas é simpático, é reverente.

Até que ponto Zé Manel pode existir para lá do disco e da personagem do programa? Não haverá uma tentação em tornar a personagem numa mascote do Benfica?
Porque não? O Hergé, autor do Tintin, dizia que sentia muito orgulho em o Tintin ser muito mais famoso que ele. Eu não tenho ciúmes nenhuns do Zé Manel! Antes pelo contrário, só tenho orgulho. Nós não interessamos nada, o que interessa é a personagem e o "boneco", e fico muito feliz que ele exista!

Ainda não lhe acontece como com os políticos que são chamados pelos nomes das personagens do "Contra-informação"?
[risos] 50 por cento tratam-me por Zé Manel. Aliás, os taxistas são generosíssimos e perguntam-me: "Ó colega, não quer vir à frente?". Devo ser a única lisboeta que não é enganada nos percursos [risos].

A Maria diz que não percebe nada de futebol...
... e não!

... mas para construir uma personagem como o Zé Manel é preciso ter alguma bagagem do mundo da bola.
Conto com dois benfiquistas ferrenhos, o Ricardo [Araújo Pereira] e o Miguel Góis, os autores do Zé Manel. E que têm essa preocupação de falar com vocabulário da bola. Eu própria faço como quem estuda uma língua estrangeira. Não percebo nada de futebol, mas tive de aprender os verbos, os doze [sic] jogadores, os suplentes que ficam no banco, o árbitro que é não sei quê, os 50 minutos [sic]...
E há a observação dos adeptos. O amor do Zé Manel é pelo Benfica, mas este fervor, esta paixão, este amor à camisola, pode ser pelo Benfica, pelo Manchester United! É comum, é universal. Como a paixão na música. Este fervor é comparável a outras paixões. Foi isso que dei ao Zé Manel.

Passou a estar mais atenta ao futebol.
E passei a ir ao estádio da Luz! A primeira vez que fui ao estádio, ao finito estádio da Luz [risos], com o meu marido - também um ferrenho benfiquista -, lembro-me de ele ter passado o tempo todo a olhar para o jogo e eu para as pessoas! E vão-se apanhando expressões extraordinárias.
Há outra coisa genial: achamos sempre que é o futebol é um mundo de homens, mas há mulheres ainda mais desbocadas e frenéticas! Com bocas mais violentas, de fazer corar qualquer carroceiro. É um mundo muito especial. É vulgar que, quando há um golo, o doutor ou o senhor todo bem posto se abrace ao cigano ou ao arrumador mais "chungoso". Há uma irmandade que só é possível no futebol.


«O humor é sempre uma coisa por camadas. Feliz o que come o bolo todo»

A Maria tem um percurso muito multifacetado. Como é que estas coisas se encaixam, como é que vão funcionando?
Sou acima de tudo uma actriz, que se tem fixado mais no registo da comédia e do humor. No início podia ter optado por fazer várias coisas ao mesmo tempo, mas achei que faz sentido a especialização. Se eu toco bem um instrumento porque é que hei-de tocar menos bem uma data deles ao mesmo tempo? Sinto que a minha praia, como dizem os brasileiros, é o humor e a comédia. Gosto muito!

Fala-se agora de uma revitalização do humor em Portugal - das Produções Fictícias a alguma "stand-up comedy" que aparece nas televisões. De facto, há essa revitalização do humor, ou ainda são pequenas ilhas num oceano imenso?
Acho que ainda são pequenas ilhas. A nuvem dos "reality-shows" ainda não passou de todo. Esta tentativa de "stand-up" em televisão não é bem o que é a "stand-up comedy" em teatro, que é uma coisa muito mais subtil, muito mais de "non-sense". Basta lembrarmo-nos, às vezes, dos discursos iniciais do Seinfeld - coisas não óbvias, que é contar uma história com graça. O "Levanta-te e ri" [programa da SIC], salvo algumas excepções muitíssimo boas, é uma colagem de anedotas. O que também já é bom - fico felicíssima pelo seu sucesso e porque acho bom que as pessoas estejam outra vez abertas a rir.
Acho extraordinário o sucesso das "Manobras de diversão" [no palco do Teatro São Luís, em Lisboa], onde está o Manuel Marques, que surgiu no "Programa da Maria". E há público para essas pessoas, eles estão sempre esgotados. Como fico feliz com o José Pedro Gomes e o António Feio, na "Conversa da treta". Mas são pequenas ilhas.

Ainda permanece mais o registo dos "Malucos do Riso", da piada mais fácil, do que um registo como o "Casino Royal" ou o "Humor de Perdição".
Absolutamente. O meu próprio programa foi suspenso na SIC ["Programa da Maria", está a ser exibido na íntegra na SIC Radical]. Nós estamos a viver tempos tão complicados, vivemos tempos de medo, de desemprego... O humor mais complicado obriga a pensar. E é muito mais fácil servir um rápido bife com batatas fritas, "riam-se lá desta anedota", e vai tudo para casa. O resto implica mais trabalho, para quem faz e para quem recebe.
Para ver o "Casino Royal" era preciso ter visto as notícias, tê-las percebido, para depois ver onde estava a graça. Uma anedota óbvia do alentejano ou de tomates - é uma coisa descartável, ri-se e pronto. Mas já acho bom que se tenha vontade de rir em tempos tão tristes.

Mas os textos das Produções Fictícias também pedem alguma atenção ao que passa.
O Herman dizia há vinte anos que fazer humor é fazer um bolo de bolacha. O humor é sempre uma coisa em que nem toda a gente apanhará o bolo inteiro. Há pessoas que perceberão só a primeira camada, a mais óbvia.
Para lhe dar um exemplo: o Nelo e Idália [personagens de Herman José e Maria Rueff]. Há ainda muita gente que se ri porque acha que é só um casal que se dá mal. Outros percebem que ele é uma "bicha" que usou uma mulher para se casar e critica-se a quantidade de "bichas" casadas - porque a própria sociedade "obriga" e porque as pessoas não têm coragem de assumir a sua homossexualidade. Há outras que se riem da falta de graça da Idália, há outras que se riem só com o boneco do Herman.
O humor é sempre uma coisa por camadas - feliz o que come o bolo todo! Mas para quem só perceber a camada de cima, de manteiga e açúcar, já é saboroso. Às vezes, nós próprios a fazer o bolo não temos uma leitura que outras pessoas têm. Já me aconteceu ficar perfeitamente extasiada com a leitura que professores catedráticos fizeram de rábulas minhas!

Para "apanhar" uma personagem que conhece menos procura estudá-la no meio?
Observo tudo. Os actores são quase todos assim. Há até quem nos acuse de roubarmos a alma às pessoas. É um estudo muito exaustivo. Quando se tem que fazer alguém como a Manuela Moura Guedes, por exemplo, chego a dar em louca. Vejo tantas vezes a mesma cassete que fico semanas inteiras com tiques, vidrada, a papaguear aquilo!
No filme do Luís Filipe Rocha [«A Passagem da Noite»], em que fiz de prostituta, disse ao realizador que aquilo que gostava de dar era as prostitutas que existem mesmo. Basta observá-las no Conde Redondo [em Lisboa]: não têm nada de sensualidade, nem de "puta-cliché" à americana, boazona de mini-saia. São mulheres com celulite, doridas pela vida, que têm aquela profissão para sustentar os filhos, que têm frio à noite, encostadas a uma esquina com um "kispo" e uns decotes mal-amanhados.

Como é que tem sido trabalhar nas últimas semanas com Herman José [com as acusações no processo Casa Pia]?
Tudo igual, tudo igual. Tranquilíssimo. Não mudou nada.

Não há temas-tabu?
Claro que sim. Morreu o pai do Herman, como morreu o meu - nessas semanas, vou estar sempre mais sensível a brincar... Para já, não gosto nada de brincar com a morte! Vou estar mais sensível. Nas minhas rábulas tento fazer sempre um exercício, para mim: eu ria-me ou ficava magoada? O humor não tem como objectivo magoar ninguém. Para mim, não faz sentido fazer humor que não seja catártico, para evoluirmos todos. [risos]

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