Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

24.2.07

Reportagens do baú: Como vender os sucessos do chuveiro


[artigo originalmente publicado no PortugalDiário a 5 de Junho de 2001]

REPORTAGEM: Do chuveiro ao disco compacto a distância é grande. E do disco compacto à venda nos escaparates ainda maior é a distância


Faixa 1. Bateram a muitas portas, mostraram ao que vinham e propuseram fazer-se ouvir. Ninguém lhes ligou. Resolveram gravar em casa e com uma edição de autor nas mãos calcorrearam discotecas para deixar algumas cópias para venda. As pessoas começaram a ouvir, a comprar, a gostar e... a passar palavra. Quatro anos depois, os The Gift são um sucesso. Mas presentes destes não se repetem.

A originalidade do grupo de Alcobaça ajudou, assim como a “boa imprensa” com recensões elogiosas. Hoje, o mercado já não impõe nomes novos. É uma jogada de alto risco: «Não interessa editar muito, por não ter retorno», sublinha António Brissos, da Movieplay. «Em 1998 ou 99, o mercado suportava bem [as edições], agora não», acrescenta.

Lembra-se do êxito dos Silence 4? A editora teve que reforçar o “stock” de «Silence Becomes It» nas lojas, apanhada de surpresa pelas vendas. Outro fenómeno orquestrado por duas pautas essenciais: “soprar ao ouvido” e alguma comunicação social. Esta semana, o grupo está em Espanha a promover o seu segundo álbum. Ao alcance de poucos.

Faixa 2. Há quem se diga “punk reaccionário” ou cante “música aconchegante”. A originalidade não se mede por estas etiquetas. É preciso esquecer o que anda nas rádios, as imitações de “britney spears” ou dos “depeche mode”, o som “à luís represas” ou a voz feminina mais orquestra “à gift”. Também não vale a pena imitar os Cebola Mol e Zé Cabra. São fenómenos pontuais que ninguém parece querer repetir até à exaustão da fórmula do “desafinado”. Mas para convencer uma editora é preciso insistir muito – do chuveiro ao disco compacto a distância é grande. E do disco compacto à venda nos escaparates ainda maior é a distância.

O pequeno retalho faliu, as grandes superfícies modelam gostos, o IVA é taxado a 17 por cento e as rádios estão formatadas para nomes feitos. Aliás, «as rádios não fazem êxitos, só tocam êxitos», queixaram-se ao PortugalDiário diferentes responsáveis editoriais. Sobretudo de editoras mais pequenas. Da televisão, não vale a pena falar. Não há um único programa de divulgação musical, exceptuando os inevitáveis “tops”. «E coisas que não tenham vídeos passam dificilmente para o público», completa António Brissos.

«O “do it yourself” também está um pouco esgotado», reconhece Brissos. Ainda assim, a Strauss distribui «artistas que aparecem com tudo feito», como Shen Ribeiro ou Vá-de-Viró. Mas às mesas dos “A&R” [artistas e repertório] das editoras chegam outras coisas, sem tudo feito: bandas de garagem, produtos inspirados nos novos sons de dança, como por exemplo Daft Punk, «muito na onda do que se ouve», conta António Brissos.
Depois do êxito das guitarras dos Silence 4, muitos grupos soaram como a banda de Leiria. E «80 por cento das maquetes são cantadas em inglês», acrescenta. À imagem e semelhança de «Borrow», o tema dos Silence 4 que pôs Portugal a cantar em inglês. Ou dos álbuns dos Gift.

Faixa 3. Lisboa também é uma cidade pouco musical. A maior parte das propostas recebidas pelas editoras contactadas vêm de todo o lado, de Bragança a Faro, e pouco da capital – onde estão os palcos e... as editoras. E também «de portugueses radicados no estrangeiro», revela Ana Abrantes, da Strauss.

Nos arredores da capital – nas localidades com fortes comunidades de imigrantes – nascem cantigas de amor e maldizer ou histórias de mortos-vivos envoltas nas (velhas e novas) sonoridades africanas, como por exemplo o “kuduro”.

De ideias feitas, grupos e artistas “ensinam” as editoras a fazer e promover os “álbuns”: ir um mês a Londres, para gravar eventualmente com um produtor famoso, que tenha trabalhado com os U2 ou os Oasis, e depois uma festa de lançamento no Lux – condição obrigatória – mesmo que a música não se adeque àquele espaço nocturno lisboeta.

Créditos finais. Viver da música não é coisa fácil em Portugal. Os nomes feitos têm mercado, mas mesmo esses arriscam-se a vender meia dúzia de discos e a voltar aos circuitos dos bailes de paróquia e festas populares. «Hoje, o tempo de vida de um disco é muito menor», sublinha António Brissos. Os outros todos bem podem continuar a tentar. Nem que seja todas as manhãs no chuveiro.


[imagens: capa do álbum Vynil, dos Gift (em cima), e foto de David Fonseca e Sofia Lisboa, dos Silence 4 (em baixo)]

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