Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

10.2.07

Reportagens do baú*: Fúria de conduzir

[artigo originalmente publicado no PortugalDiário a 26 de Março de 2002]

REPORTAGEM: Os americanos falam em "road rage", uma doença grave e contagiosa. E estudam-na. Em Portugal, não há dados sobre a agressividade ao volante, mas há casos. Recuperamos um


O Rover cola-se agressivamente à traseira do Ford – e passa-o bruscamente. No segundo veículo, o passageiro reage acenando um "adeus" ao condutor apressado. O aprendiz de Schumacher desacelera: alguém o tinha afrontado. E começa a conduzir para "empatar" a marcha do Ford. No semáforo seguinte, cai oportunamente o vermelho.

O condutor do Rover sai do carro, dirige-se para o Ford e parte o vidro, ferindo na cara o passageiro. Só não volta à carga porque a condutora deste veículo grita "sangue!". O agressor volta para a sua viatura – e segue marcha.

Este caso não é ficcionado. Foi relatado no PortugalDiário, e aconteceu a 2 de Março, em Lisboa. Nesse sábado, André estava longe de imaginar que acabaria com a cara desfigurada pelos estilhaços do vidro do automóvel. Vítima da "fúria ao volante", que muitos dizem ser doença.

Em Portugal, não há estudos sobre estes casos, que os americanos chamam de "road rage" [fúria ao volante]. Mas arriscam-se possíveis respostas: «A estrada é vista como uma situação de competição – não explícita, mas implícita», argumenta Francisco Navalho, psicólogo do Instituto de Reinserção Social (IRS) de Coimbra. «Todos se transfiguram ao volante», acrescenta. Quem nunca gritou, insultou ou se enfureceu a conduzir?

Também a GNR não tem dados sobre a matéria. Como a maior parte dos casos se reportam a injúrias e ofensas corporais, a Brigada de Trânsito não compila números, disse ao PortugalDiário Barão Mendes, oficial de Relações Públicas da corporação. As ocorrências são remetidas para as esquadras.

O IRS está a trabalhar, a nível nacional, num estudo sobre o crime de condução em estado de embriaguez. E algumas das pistas de trabalho podem aplicar-se à condução violenta: «Desvaloriza-se a complexidade da tarefa na condução», refere aquele psicólogo, ou seja, as pessoas acham que conduzir é simples, «um processo tão automático e fácil» quando não é. E pode existir uma tendência para se ser «mais agressivo e menos humilde ao volante».

Nos Estados Unidos, a "road rage" tem sido estudada por psicólogos e autoridades policiais, preocupados com o aumento dos casos e – sobretudo – com o crescimento da intensidade da "raiva": «Antes as pessoas costumavam gritar, agora disparam umas sobre as outras. É uma doença grave, e é contagiosa», observou ao San Francisco Chronicle o psicólogo Arnold Nerenberg, investigador do fenómeno e conselheiro de vítimas e agressores.

Francisco Navalho concorda com a leitura de Nerenberg: «A tensão urbana contagia-se». E explica: «O espaço urbano é denso e tenso, e há imponderáveis que não controlamos» – como fazer um percurso em duas horas, quando se esperava demorar 15 minutos. E geram-se mecanismos de resposta agressiva, que pode ter uma explicação neurológica e evolucionista, refere o psicólogo citando as teses de António Damásio. Que se explicam, de uma forma simplista: o cérebro é formado por camadas que se foram constituindo ao longo da evolução da espécie. A última camada é o córtex, o lado mais "humano", que controla outras camadas, incluindo a mais primitiva e "animal" – o sistema límbico. E nem sempre o córtex controla este sistema límbico.

Como evitar então estas situações? Respondem as autoridades americanas para a segurança rodoviária: «Concentre-se: não se distraia a falar ao telemóvel, a comer ou beber, ou a maquilhar-se. Relaxe: sintonize o rádio com a sua música favorita mais calma. Conduza dentro do limite de velocidade: poucos acidentes acontecem quando os carros circulam a velocidades idênticas ou próximas. Identifique caminhos alternativos: procure outras estradas. O que parece mais longo no mapa pode estar menos congestionado. Utilize os transportes públicos: assim evita o stresse ao volante. Atrase-se: se tudo o resto falha, chegue atrasado.» Apenas isto. Ou como antes se escrevia nas passagens de nível: páre, escute e olhe.


[* - nota: ao fim-de-semana, o LxRepórter recupera antigas reportagens, que de algum modo permanecem actuais]

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