Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

3.2.07

Reportagens do baú*: a Igreja, a política e o aborto

[estes dois artigos foram publicados originalmente no PortugalDiário, quando das eleições presidenciais de 2001 e das legislativas de 2002]

«Já passámos o tempo em que se dizia em quem as pessoas deviam votar»
[12 de Janeiro de 2001]

Não caiu bem em alguns sectores eclesiais a iniciativa de três movimentos anti-aborto que enviaram uma carta aos párocos de todo o país para estes darem uma indicação de voto em Ferreira do Amaral [às eleições presidenciais], o «candidato que mais se aproxima de Cristo».
«Já passámos o tempo em que se dizia em quem as pessoas deviam votar», diz José Manuel Pereira de Almeida, pároco de Santa Isabel, uma freguesia do centro de Lisboa. «Hoje, está mais do que assumido que votar é de acordo com a consciência de cada um», adianta aquele padre, que confirma ter recebido a carta dos movimentos «Mulheres em Acção», «Tudo pela Vida» e «Vida Norte», cujo conteúdo foi divulgado esta sexta-feira no «Independente».
O apelo ao voto no candidato social-democrata não é directo, mas não deixa margem para dúvidas quando se lê na carta: «No próximo fim-de-semana, na Santa Missa, mencione a importância de votar no candidato que mais se aproxime de Cristo, que seja pela Cultura da Vida e que respeite as famílias.»
Pereira de Almeida recusa-se a mencionar tal assunto na missa do próximo domingo: «A homilia tem a ver com os textos do Evangelho, com as leituras do dia, a partir da realidade que vivemos.» Na mesma linha do prior de Santa Isabel, está D. Januário Torgal Ferreira, vigário-geral castrense e bispo auxiliar em Lisboa, que diz que «manda a lei fundamental da deontologia que nenhum padre do altar dê indicações de voto».
Este prelado «desconhecia em absoluto» esta carta, que nem foi objecto de conversa entre os bispos do Patriarcado. «Determinados movimentos têm o atrevimento, injusto e indevido, de se “atirar” ao D. José Policarpo», refere aquele bispo, que apresenta esta carta como uma crítica ao suposto apoio que o patriarca lisboeta terá anunciado a Jorge Sampaio, segundo uma inconfidência da dirigente socialista Edite Estrela.
Estas organizações, que fizeram campanha durante o referendo sobre a despenalização do aborto, sustentam o apelo aos padres de todo o país com a necessidade de escolher também as convicções dos candidatos: «Cabe-nos a nós, cristãos, exercer o nosso dever cívico de voto em consciência escolhendo o candidato presidencial que mais se aproxime da nossa Fé Cristã, que defenda a Vida, a Maternidade e a Família.» E citam João Paulo II, que lembrou que «a Igreja tem o papel de se opor publicamente às leis dos seus países quando elas são a favor do aborto ou quando querem atribuir o mesmo estatuto do Matrimónio às uniões de facto».
Para Januário Ferreira esta atitude revela «um conservadorismo atroz, por muitas razões correctas que estejam por detrás». E ataca: «Se esses movimentos tivessem a coragem de dar a cara e fugissem deste “clericalizar” da situação, quando escrevem aos senhores padres e não aos senhores bispos.»
Já durante o debate do referendo da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o modo de actuação destes movimentos anti-aborto tinha merecido críticas de outros sectores da Igreja portuguesa.


Igreja partida
[7 de Março de 2002]

Os católicos andam de candeias às avessas. Os bispos deixaram claro que o seu voto pode ou deve ser entregue aos partidos do centro-direita [nas eleições legislativas]. Mas há padres e leigos que não aceitam as recomendações. E dizem que as opções políticas nada têm a ver com a fé. Da esquerda à direita, as cores políticas têm muitas igrejas em Portugal.
Apoiar o Bloco de Esquerda (BE) «não incomoda» Francisco Fernandes Vilar, 60 anos, padre em Castelo Mendo e mandatário do movimento na Guarda. A sua «experiência» também não «incomodou» os seus colegas. E «os paroquianos admiram a abertura», disse ao PortugalDiário.
Isabel Allegro diz que o seu apoio ao BE, «a título pessoal», «não tem qualquer contradição com a fé cristã». A mandatária do Bloco em Lisboa é membro do Graal (movimento internacional cristão de mulheres, trazido para Portugal por Maria de Lourdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes). Disse que lhe parece «haver uma grande sintonia de muitas das propostas do BE com a mensagem evangélica, sobretudo na ideia da responsabilidade de todos por um “destino universal dos bens” e por uma justiça social efectiva».
A Associação Cristã de Empresários e Gestores (Acege) deixa algumas «questões fundamentais para o próximo governo de Portugal», que deve respeitar cinco «princípios». «Não há direcção de voto», refere Bruno Bobone, porta-voz da associação. O voto deve ser para «os partidos que cumpram estes valores». Leiam-se as entrelinhas.
A Acege propõe «evitar efeitos perversos contra o fomento do Trabalho e contra o estímulo para a inovação e melhoramento das empresas». Bobone recusa que se esteja a falar apenas do rendimento mínimo garantido (RMG), uma das medidas emblemáticas de Ferro Rodrigues: «Não se trata de discutir o RMG isoladamente, trata-se de uma tendência para patrocinar programas que estimulam a preguiça e a indolência.»
Empresários e gestores como Artur Santos Silva, Ludgero Marques, Magalhães Crespo, Jorge Jardim Gonçalves, Nogueira de Brito, José Roquete, Teixeira Duarte ou Ricardo Salgado, querem defender «intransigentemente os direitos humanos fundamentais, a Vida Humana desde a concepção até à morte natural». Falamos de aborto? «Claramente, matar está errado», remata Bobone.
«Sobre o próximo acto eleitoral» pronunciaram-se os bispos portugueses. Numa «Nota pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa», os prelados dirigem-se aos «fiéis católicos», para lembrar que a «criteriosa intervenção na vida pública» deve ser regida pelos «princípios inspiradores do Evangelho e da doutrina da Igreja».
Os bispos recusam «imiscuir» a sua opinião nas «justas opções partidárias», mas pretendem «contribuir para um justo discernimento dos cristãos». O ensino religioso nas escolas públicas ou temas que voltaram à tona, como o aborto, são alguns alvos das palavras episcopais: «O respeito pelo carácter sagrado da vida humana, de toda a vida humana, desde a concepção até à morte natural», lê-se.
O aborto é uma nota dissonante. «Ninguém pode ser a favor do aborto, mesmo aqueles que não são cristãos», diz Isabel Allegro, que defende o seu apoio ao BE por outras “causas”: «O aborto não é o ponto primeiro do programa.» Antes está a defesa de «uma maior igualdade de oportunidades», de «uma maior justiça fiscal e de distribuição dos bens» – e o «BE é o partido que traz isso mais claramente à superfície».
Mas o aborto está aí. E Allegro não evita confrontar o discurso oficial da Igreja: «Não é a questão do aborto em si que está em causa. Trata-se é da despenalização das mulheres que um dia, por razões que desconhecemos, fizeram aborto. O problema surge quando somos confrontados com a circunstância de milhares de mulheres em Portugal o fazerem clandestinamente e não poderem ser tratadas nos hospitais. Aí é que se põe o problema.» «É que ninguém tem o direito de julgar essa atitude íntima dessas mulheres. É um erro humano, e até cristão», sublinha.

[* - nota: ao fim-de-semana, o Lx Repórter recupera antigas reportagens, que de algum modo permanecem actuais]

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