Reportagens do baú: O diabo em nós
[artigo originalmente publicado no PortugalDiário a 3 de Junho de 2001]
A Igreja «devia tomar uma posição mais radical sobre os exorcismos. Muita gente está a sofrer por causa desta crença». Mas há quem garanta que está possuído
«Nessa cadeira onde você está, já esteve um homem que me ia partindo isto tudo.» Um exemplo de pessoas que se dizem com o diabo no corpo, contado ao PortugalDiário por Joaquim Carreira das Neves.
«Tire-me o demónio», pedem muitas pessoas que se dirigem a este padre. Ele recusa: «Não faço exorcismos.» Mas estuda o fenómeno e acompanha pessoas que se dizem possuídas. Como também acontecia com a pequena Regan no filme de William Friedkin, «O Exorcista», que é tomada pelo diabo.
O filme chegou devagarinho desta vez, sem o escândalo da estreia: a nova versão mais longa e em cópia restaurada estreou recentemente nas salas de cinema e em DVD. O que se vê e ouve no filme «é humano, é natural, não tem que ver com o diabo», explicou Carreira das Neves, professor da Universidade Católica e exegeta bíblico (um investigador que interpreta a Bíblia).
A miúda de 12 anos fala com voz masculina, automutila-se com um crucifixo e tem uma força descomunal capaz de arrastar homens e mobílias. Um comportamento humano e natural. Mas quem é que está no corpo de Regan? O diabo, responderão. Ou o mal. Que é a mesma coisa, acrescenta Carreira das Neves. É nesse sentido que apontam as referências bíblicas aos demónios, a Satanás e ao diabo. «São entidades sem personalidade ontológica, mas funcional. Temos que concluir que são símbolos», clarifica. O diabo não existe como pessoa, «é mesmo uma figuração».
Ser exorcista hoje
Faz então sentido exorcizar? É como que «um placebo», algo que alivia a dor com fins sugestivos ou morais, refere o padre franciscano. A Igreja tem um novo rito do exorcismo, apresentado em 1999, quando não era alterado desde 1614. Baseado num conjunto de orações, esta intervenção exorcista só acontece depois de a ciência, toda a ciência, não apresentar uma solução para disfunções psicológicas. «Aquilo é tudo histerismo», sublinha. A figura do padre é então fundamental porque a pessoa acredita que está possuída. Mas o rito deve ser sempre devidamente acompanhado por médicos.
Carreira das Neves critica a posição da Igreja: «Devia tomar uma posição mais radical [sobre os exorcismos]. Muita gente está a sofrer por causa desta crença.» O que é preciso, antes, é estar disponível para ouvir as pessoas. «Elas precisam de deitar para fora.» Falar, falar, falar.
Para não culpar Deus, culpa-se o diabo e os demónios. E não é coisa da “idade das trevas”: nesta época moderna e pós-moderna, as pessoas vão cada vez mais à bruxa e ao cartomante. «É um problema cultural», comenta o professor universitário. Afinal, em épocas de crise, de depressão económica, política e religiosa, «tudo serve para explicar o mistério da doença, do mal, a Morte». De tal forma que é frequente as pessoas perguntarem: «Que mal fiz eu a Deus?»
A história do diabo – acreditar no diabo e na incorporação do diabo – começa em épocas de crise: os judeus no exílio, desesperados pela libertação que não chegava (afinal, Israel esteve sob o jugo político de estrangeiros do século VI a.C. até... 1948, ano da independência), vêem-se nas mãos de Lúcifer. É nesta altura que nasce a literatura apocalíptica.
«O Exorcista», o filme, permite também um olhar sobre uma América em crise: 1973 seguia-se à crise petrolífera do ano anterior que lançou o mundo numa nova depressão económica; os soldados americanos continuavam a morrer no Vietname; Nixon era apanhado no escândalo de “Watergate”.
Hoje, as pessoas voltam de novo para o demónio. «Facilmente o arquétipo do demónio entra numa pessoa em disfunção», diz Carreira das Neves. «As pessoas já não acreditam como acreditavam na ciência.» E a pequena Regan já não assusta tanto: é humano aquilo que lhe acontece
Diabos, demónios e Satanás
São nomes que habitualmente usamos como sinónimos, mas que apresentam ligeiras diferenças. Demónio vem do grego daimónion, «génio mau», o maligno, enquanto que diabo vem do grego diábolos, ou seja, «caluniador», aquele que divide e nos afasta de Deus. Do hebraico satán, Satanás significa «inimigo, adversário» de Deus, aquele que evita a felicidade dos homens.
[foto: filme «O Exorcista»]
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