Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

1.12.06

Reportagens do baú*: Alguém já escreveu o próximo "best-seller"

[publicada originalmente a 11 de Maio de 2001, no Portugal Diário]

Os editores de livros não sabem, ou então são cegos e não querem arriscar. Mas na gaveta ficam esquecidos muitos sucessos, garantem os seus autores. Viagem aos livros que ficam por editar


Há sempre alguém que tem o próximo “best-seller” em casa. Os editores é que não sabem, ou então são cegos e não querem arriscar. Chega de tudo um pouco às mesas dos editores: uma “colectânea de artigos” (assim, como título de livro), contos, livros práticos “tipo-jantares-em-30-minutos” ou “a cozinha da minha avó”, recolha de citações sobre “mulheres” (dado o sucesso deste tipo de livros, garante o proponente) ou poemas, muitos e simples, como aquele que fazia rimar “O3”, com “mês”, “insensatez” e “CFCs”. Lá rimar, rima.

Passe o cliché. Portugal é um país de poetas, muitos poetas. E de contadores de histórias, também muitos. Há sempre alguém que tem o próximo “best-seller” em casa. Os editores é que não sabem, ou então são cegos e não querem arriscar.

Em Portugal, escreve-se muito e os que escrevem anseiam por publicar as suas obras. Os amigos, «a quem dei a ler o livro», gostaram e aconselharam a publicação.

À Bertrand, chegam 20 a 30 exemplares por mês. Na Editorial Notícias também são algumas dezenas as propostas que chegaram à mesa do editor Alexandre Manuel desde o início do ano. «Por amigos, por carta», os candidatos a escritores tentam a sua oportunidade: «Os livros são sempre os melhores, é “o livro que falta”», conta este responsável da Notícias.

Convencer um editor requer alguma estratégia: invocam-se prémios recebidos em pequenos concursos literários locais ou garantem-se prefácios de gente famosa. Ou então cartas charmosas com piscadelas de olho à política da editora. Até aqui tudo bem: o pior é a pressão por telefone, «de pessoas mais ou menos conhecidas», escritores ou nem por isso.

Ainda assim, ser indicado por alguém pode dar resultado. A Bertrand Editora acaba de publicar o primeiro romance de Mafalda Belmonte, enfermeira no hospital de S. José em Lisboa, que agradece «à Paula Bobone» [autora de livros de comportamento social] por lhe ter «“ensinado o caminho” para a Editora».

Da mão-cheia de propostas de edição recebidas pelas editoras, apenas uma ínfima parte é editada, reconhece Zita Seabra, responsável editorial da Bertrand e da Quetzal. Também Alexandre Manuel tem dificuldades em se lembrar de alguma obra que tenha vindo parar às suas mãos, nos últimos dois/três anos, e que tenha sido publicada. Acaba por se lembrar de um: «Casei com um padre, o testemunho de uma vida», relato na primeira pessoa de uma mulher, Fernanda Araújo, que «foi levada a casar-se com um padre». E refere um outro livro pensado para editar, apesar do autor da obra ainda não o saber.

A linha editorial das editoras também ajuda: por causa da «Guerra Colonial» (de Aniceto Afonso), a Editorial Notícias recebe muitas propostas de livros sobre África. Depois do lançamento de «Receitas Afrodisíacas & Desenhos Eróticos» (de Afonso Praça, com ilustrações de Francisco Simões), também lhes chegaram várias propostas deste tipo. E com a indicação de ilustradores preferidos.

Há ainda aqueles que sugerem o esquema de capa, exigem respostas breves (por terem outros editores interessados) ou que apresentam prefácios a atacar... os editores! Os mesmos a quem dirigem as propostas.

Mas não se pense que os editores desdenham das propostas que lhes chegam. «Há livros que se perderão, o que é uma pena», diz Alexandre Manuel, exemplificando com trabalhos demasiado especializados ou, «infelizmente», não comercializáveis. «Outros não se enquadram na nossa edição», diz Zita Seabra que fala também na «subjectividade» da escolha: «ninguém» sabe se está a rejeitar um sucesso retumbante ou um génio da escrita, lembrando as recusas de primeiras obras de Marguerite Duras e José Saramago. Ou a «raiva» em rejeitar uma obra que depois é um grande sucesso noutra editora.

A ética, «esse é que é o limite». Evitar a exploração de temas que estão no «fio da navalha», argumenta a editora da Bertrand. E exemplifica com uma proposta recebida – «uma proposta séria» – sobre a tragédia de Entre-os-Rios.

Arrume-se o cliché. Portugal não é um país de poetas. É um país de pessoas que não sabem ler poesia, sustenta Zita Seabra. «Não é com estados de alma que se conta uma boa história.»


[* -
nota: ao fim-de-semana, o Lx Repórter recupera antigas reportagens, que de algum modo permanecem actuais]

No comments:

Páginas que citam este blogue
Link to this page and get a link back!