Um blogue de notícias, publicado por Miguel Marujo, jornalista com a carteira profissional nº 5950. O ponto de partida do repórter é Lisboa, mais como espaço físico onde se situa o jornalista, do que como único motivo de reportagem. Aqui não descobrirá a história ao minuto, mas uma tentativa de manter um olhar atento e, eventualmente, diferente sobre a Cidade. Envie-nos o seu alerta, a sua sugestão ou o seu comentário para mmarujo@gmail.com

14.5.07

Reportagens do baú*: Quando as pessoas não são números

[artigo originalmente publicado a 11 de Outubro de 2002 no PortugalDiário]


REPORTAGEM: Há empresas que tentam evitar despedimentos. E que partilham os lucros com os mais pobres. «Eu sou do tempo em que o bom empresário era o que contratava, o que criava emprego», avisa Bagão Félix


«Há algo que precisa de ser dito: o que incomoda mais é que hoje os gurus da economia são os que despedem mais pessoas, não os que criam emprego. Eu sou do tempo em que o bom empresário era o que contratava, o que criava emprego. É contra essa sociedade rude que eu me insurjo». Quem assim falou foi o ministro da Segurança Social e do Trabalho, Bagão Félix. E disse-o em entrevista ao PortugalDiário.

Católico militante, o governante talvez não desconheça uma experiência que empresários e gestores estão a pôr em prática: economia de comunhão - um nome que traduz um projecto católico de solidariedade. Mas que não tem "cor": «Não é uma experiência restrita. Há pessoas não crentes, de outras religiões», explicou ao PortugalDiário Filipe Coelho, da Amu - Acções para um Mundo Unido (a organização não-governamental que promove a experiência em Portugal).

Em Aveiro, onze empresas fecharam para férias e não voltaram a abrir. 360 trabalhadores ficaram sem emprego. Em Braga, 25 empresas fecharam na mesma situação. Mais 1500 trabalhadores sem emprego.

Uma empresa que abrace a economia de comunhão procuraria outra solução, garante Cristina Marques, outra dirigente da Amu: «Se estiver em risco a própria sobrevivência da empresa, é necessário encontrar alternativas para trabalhadores que eventualmente estejam a mais». Filipe Coelho sublinha: «As pessoas não são números. Não se põe logo em cima da mesa a solução mais fácil».

Afinal, diz Coelho, «o lucro não é o centro único e prioritário de toda a actividade, mas sim o ser humano, que é o centro do agir da empresa e do empresário». Deotilde Araújo, empresária que abraçou esta «filosofia de vida», parece confirmar esta ideia: «O negócio é sempre um risco, mas podemos medir esse risco. Se calhar, a minha algibeira pode levar menos para casa».

As empresas envolvidas na experiência da economia de comunhão comprometem-se a "levar menos na algibeira": «O lucro não é exclusivamente destinado» às empresas, esclarece Cristina Marques. São antes destinados a um «bolo comum, recolhido em cada país e enviado para uma coordenação internacional», explica Filipe Coelho. «Não é uma quota, nem uma taxa. O empresário pode precisar de investir na sua empresa».

Em cada país, agentes locais «identificam pessoas que precisam da ajuda» desse bolo comum.

Uma ideia invulgar

A experiência da "Economia de Comunhão na Liberdade", o nome original da proposta de Chiara Lubich, fundadora do movimento católico dos Focolares, nasceu de uma visita desta italiana ao Brasil, impressionada pelo contraste entre uma das maiores concentrações de arranha-céus do mundo e as favelas que "mancham" a cidade de São Paulo.

A economia de comunhão é «uma das várias expressões que vão fazendo uma revolução silenciosa» no mundo do trabalho, assegura Filipe Coelho. E cita outros exemplos: o microcrédito e o comércio justo. Mas os promotores da experiência sublinham que é um «projecto-criança», uma «realidade nova». E que precisa de crescer.

O projecto radica-se numa «cultura do dar», que - segundo os seus promotores - ultrapassa a forma invulgar de repartir o lucro das empresas. «Tal como temos de arranjar dinheiro para os impostos, temos de arranjar para isto», explica Deotilde Araújo, que gere com o marido uma pequena empresa de contabilidade em Sobral de Monte Agraço. «Privilegiamos mais um bom ambiente de trabalho do que ter outras coisas», defende.

Ao abraçar este projecto, Deotilde sabe que está sob o escrutínio de trabalhadores, fornecedores e clientes: «Não podemos criar situações que os façam duvidar» da experiência. Mas, adverte, não faz disto bandeira, «é uma empresa normalíssima». Prefere fazer. «Há dores, há problemas para resolver, como em tudo, como nas nossas famílias».


[* - o LxRepórter recupera algumas reportagens que permanecem actuais]

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